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    O barco de luxo e Lula e Janja

    A polêmica em torno do barco de luxo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva — e Janja — irão usar durante a COP30, que começa na nesta segunda (10), em Belém, revela muito mais do que uma simples escolha de hospedagem. O episódio, que começou como um gesto simbólico de austeridade, transformou-se em um debate sobre coerência, transparência e o uso dos recursos públicos em tempos de contenção fiscal. Lula havia declarado que desejava “dormir em um barco” durante a conferência climática, dizendo não querer luxo e buscando associar sua presença à simplicidade amazônica. Contudo, a decisão de rejeitar o navio da Marinha, o NAM Atlântico, sob a justificativa de que não atendia às “especificações exigidas pela Presidência”, levantou suspeitas de que o discurso de humildade encobre uma logística dispendiosa e cuidadosamente planejada para atender padrões de conforto e segurança muito acima da média.

    Segundo informações publicadas por diferentes veículos de imprensa, o Planalto optou por utilizar uma embarcação privada, o barco-hotel Iana 3, atracado na Base Naval de Val-de-Cães, em Belém. O custo estimado dessa operação, segundo apurado em Belém, giraria em torno de R$ 450 mil em condições normais, apenas para o período da conferência, valor que, embora não oficialmente confirmado, já causa incômodo entre opositores e até entre apoiadores mais atentos às contas públicas. O episódio ganha ainda mais peso porque o governo federal já contratou dois grandes navios de cruzeiro para hospedar delegações internacionais, um investimento que pode alcançar R$ 259 milhões. Ou seja, enquanto o discurso oficial fala em austeridade e sustentabilidade, os números caminham em direção oposta.

    O simbolismo da escolha é, no mínimo, contraditório. A ideia de um presidente “próximo do povo”, que opta por uma acomodação simples, perde força diante de uma estrutura onerosa e pouco transparente. Se o objetivo era reforçar a imagem de um Brasil comprometido com a verdade climática e com a modéstia institucional, a falta de clareza sobre custos e critérios de escolha do barco gera o efeito inverso. Em um momento em que o País enfrenta sérias restrições orçamentárias, atrasos em obras e cortes em programas sociais, a percepção pública sobre o esbanjamento de dinheiro público torna-se inevitavelmente crítica. A incoerência entre discurso e prática corrói a credibilidade de um governo que busca se posicionar como liderança moral na agenda ambiental global.

    Outro ponto sensível é o contraste entre a logística do evento e a realidade da própria cidade de Belém. Com uma rede hoteleira insuficiente, os preços de hospedagem durante a COP30 dispararam, gerando reclamações de delegações estrangeiras e de ONGs, e o próprio esvaziamento da conferência devido aos altos custos. Nesse cenário, o gesto presidencial de usar um barco, ainda que por razões práticas, soa mais como uma estratégia de marketing do que como um ato de solidariedade ou modéstia, próprio da velha política da aparência.

    A questão central, portanto, não é onde o presidente vai dormir, mas quanto o contribuinte vai pagar por isso. A ausência de transparência nos gastos da Presidência, fere a confiança pública e dá margem a interpretações políticas que o governo poderia evitar. O mínimo esperado seria a divulgação detalhada dos contratos, das empresas envolvidas e das justificativas técnicas que levaram à rejeição do navio da Marinha. Essa prestação de contas não é um favor, é um dever constitucional de quem administra recursos públicos.

    A COP30, que deveria ser o palco da liderança brasileira em temas climáticos, corre o risco de ser ofuscada por uma pauta doméstica de má gestão e incoerência. A imagem de um presidente hospedado em um barco de luxo, ainda que travestido de simplicidade, compromete o simbolismo de um evento “voltado à sustentabilidade e à justiça ambiental”. O Brasil, que almeja ser exemplo no debate global sobre responsabilidade ecológica, não pode ignorar que a verdadeira sustentabilidade começa pela ética no uso do dinheiro público. E, nesse caso, o barco que deveria representar a Amazônia pode acabar simbolizando apenas o naufrágio da coerência política.

    Há, ainda, um possível aspecto moral envolvendo o dono da embarcação. Segundo a coluna Radar, da Revista Veja, o barco pertence ao empresário Iomar Oliveira, que aluga embarcações ao governo do Amazonas. O Iana 2, por exemplo, está sendo usado pelo governador Wilson Lima. O Iana 3, que serve a Lula, é bem famoso. Já esteve envolvido em denúncias de crimes eleitorais no Amazonas. A embarcação chegou a ser revistada numa operação policial, apurou a Veja. “Em Manaus, os contratos públicos de locação da embarcação escandalizaram a população, diante do ‘luxo’ bancado com dinheiro público”, diz a coluna Radar.

    Editorial do Jornal Cruzeiro do Sul – Sorocaba (04-11-2025)

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