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    A garganta de um autista: quando as vozes ficam presas entre o pensamento e o mundo

    “Há um universo inteiro dentro da cabeça de um autista, mas muitas vezes ele fica retido na garganta, em silêncio.”

    Na busca por compreender o que significa viver dentro do espectro do autismo, surgem metáforas que ajudam a traduzir uma experiência que nem sempre encontra espaço nas palavras. Uma delas é a imagem da garganta como fronteira entre o que o autista pensa e o que consegue expressar.
    Muitos dos meus pacientes autistas relatam que vivem com pensamentos que ecoam como vozes internas, intensas e persistentes. Ideias, sentimentos, imagens, associações, tudo muito organizado em gavetas, onde o mundo se apresenta de maneira diferente da percepção considerada “padrão”. Essa organização singular pode ser ao mesmo tempo rica e desafiadora.
    O dilema, no entanto, surge quando chega a hora de se comunicar.
    As vozes, tão claras dentro da mente, encontram resistência ao tentar atravessar a garganta. Não é falta de inteligência, nem ausência de desejo de falar, é o peso da dúvida: “Será que alguém me entenderia?”
    Esse bloqueio emocional e neurológico é comum. O autista muitas vezes sente que, ao abrir a boca, o mundo não compreenderia a forma como ele enxerga a realidade. O medo de ser mal-interpretado, somado às dificuldades naturais de linguagem e interação, gera uma barreira invisível. O que era intenso dentro, torna-se silêncio fora.
    Nos especialistas apontamos que esse fenômeno não deve ser confundido com timidez. Trata-se de um funcionamento diferente da comunicação, marcado por uma percepção mais literal, concreta e fragmentada. Enquanto muitos falam em metáforas, o autista pode enxergar “gavetas” de significados, compartimentos bem definidos que não se misturam. Traduzir esse universo interno para a linguagem cotidiana pode ser tão complexo quanto traduzir uma língua desconhecida.
    Para familiares e educadores, compreender essa “garganta que aprisiona” é um passo fundamental. Significa reconhecer que a ausência de fala não equivale à ausência de pensamento. Muitas vezes, há ali uma riqueza de ideias esperando apenas por pontes adequadas , seja através da escrita, da música, do desenho ou de recursos tecnológicos de comunicação alternativa.
    Dar voz a quem tem dificuldade de falar é mais do que inclusão: é escuta ativa e respeito à diversidade neurológica. Porque, no fundo, a garganta de um autista não é apenas um lugar de silêncio. É também um espaço de resistência, onde pulsa um mundo interior cheio de vozes que merecem ser ouvidas.

     

    Dra Pollyana Vieira
    Neurocientista Especialista em Comportamento e Desenvolvimento Humano
    SBNeC n° 16557/21
    Psicanalista
    Analista do Comportamento – ABA

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